Entrevista com a Professora: Rachel Soihet

Professora: Rachel Soihet


Bom dia! Gostaríamos de apresentar para a Senhora o Site “Faces da História”, é um projeto cultural que foi criado com o objetivo de auxiliar os estudantes universitários a descobrir as diferentes faces do conhecimento histórico, além da tão conhecida História política e econômica revelar um pouco da historia social da mulher.

Sendo a senhora especialista em historia de gênero, focando a História da mulher, pedimos à gentileza que disponha de alguns minutos de seu precioso tempo para que contribua para o enriquecimento do nosso projeto contando um pouco da história social, nos respondendo em uma breve entrevista.

Ao iniciar a entrevista gostaria que a senhora relatasse um pouco de sua trajetória, ou seja, a sua biografia: onde nasceu e quando, instituições em que estudou e o que estudou, projetos, obras literárias...

Nasci em Salvador há muitos anos. Vim para o Rio de Janeiro, mais precisamente, Niterói, nos anos 1950. Aqui ingressei na Faculdade Fluminense de Filosofia, depois Universidade Federal Fluminense, na qual fiz o curso de História. Nessa mesma Universidade fiz o mestrado entre os anos 1972/1974. Ingressei como professora dessa instituição em 1976 e, já com a situação consolidada, fiz o doutorado na USP no período 1982/1986, do qual resultou uma tese publicada sob o título Condição Feminina e Formas de Violência. Mulheres Pobres e Ordem Urbana (1890-1920). Tal obra foi editada pela Forense Universitária em 1989. Posteriormente, fiz um concurso na própria UFF para profª titular e a tese que apresentei foi também publicada com o título A Subversão pelo Riso. Estudos sobre o Carnaval Carioca da Belle Époque ao tempo de Vargas. Enfim, além desses tenho publicado mais um livro sobre Bertha Lutz, assim como capítulos de livros e artigos sobre gênero e/ou sobre História Cultural.

Faces da História pergunta: Em que momento o homem e a mulher vão ser socializados, ou seja, aparecem na história com uma certa visibilidade social? Quais foram os primeiros teóricos a pensar na questão da mulher? E Porquê?

Resposta da Professora Rachel Soihet:

Na verdade, a presença masculina sempre foi uma constante na história. As mulheres é que foram praticamente invisíveis e, na maioria das vezes, ao se falar da história da humanidade, especialmente, com o Iluminismo, a referência era o homem branco ocidental. Alguns poucos teóricos interessaram-se pelas mulheres, muitos deles como os filósofos Diderot e Rousseau considerando-as inferiores em inteligência, fisicamente frágeis e destinadas à maternidade. Disso resultou uma educação diferenciada para mulheres e homens, já que estas, de acordo com essas crenças eram incapazes de grandes abstrações. Aliás, a medicina acompanhou esta crença e, durante largo tempo, tais idéias foram veiculadas como expressão da ciência. Apesar disso, existiram teóricos como o inglês John Stuart Mill que consideravam as mulheres tão capazes como os homens. Também, o socialista francês Charles Fourier, igualmente, no século XIX preconizava a instauração de equipamentos coletivos como restaurantes, lavanderias para a liberação das mulheres das tarefas domésticas, além de propor uma educação comum aos dois gêneros e a liberdade sexual para ambos. De alguma forma, Engels e Bebel, também eram preocupados com a subordinação das mulheres, acreditando que a instauração do socialismo seria a solução para se atingir plena igualdade entre os sexos..

Faces da História pergunta: Na questão do homem e da mulher, no que tange o público e o privado, a senhora concorda que houve uma grande revolução, uma reconquista do espaço social por parte das mulheres? Quais as maiores vitórias? Quais conquistas ainda lhe faltam?

Resposta da Professora Raquel Soihet:

Transformações ocorreram, devido especialmente à pressão das mulheres, destacando-se os movimentos feministas. Estes ocorreram em dois momentos principais, ou duas vagas como se costuma nomear. A primeira correspondeu ao período entre a segunda metade do século XIX até os anos 1930. As principais reivindicações nessa fase consistiam em direito ao trabalho com salários idênticos aos homens, acesso a todas as modalidades de educação, direitos civis e direitos políticos. Já em fins dos anos 1960, em meio à luta dos negros norte-americanos pelos direitos civis, à contracultura e, posteriormente, com os protestos contra a guerra do Vietnam, as mulheres percebem-se incapazes de desenvolver todas as suas potencialidades. Emerge uma nova vaga feminista, inicialmente, nos Estados Unidos, mas que se manifestará, também, em outras partes do mundo, como a Europa Ocidental e, também, no Brasil. Nesse momento, as mulheres exigem o direito de controlar seu corpo, considerando-se a maternidade uma opção e não uma obrigação. A questão da violência contra as mulheres foi colocada em pauta, argumentando-se em favor do caráter político do privado. Ou seja, as questões entre homens e mulheres, inclusive, as agressões no âmbito doméstico, deveriam ser levadas para a esfera pública. Além disso, demandavam a parceria dos homens nas tarefas domésticas e nos cuidados com os filhos, Claro que transformações ocorreram nas relações entre mulheres e homens, embora como toda questão do âmbito cultural, que impregna a ambos não encontre uma resolução imediata. Portanto, esta é uma luta que continua....

Faces da História pergunta: Por que as mulheres ainda hoje são a maioria no processo ensino-aprendizagem em nossa sociedade? Seria possível relacionar a permanência da mulher neste ramo e a menor valorização?

Resposta da Professora Rachel Soihet:

Como já fiz alusão anteriormente, especialmente, a partir do século XVIII as mulheres foram vistas como especialmente destinadas à maternidade, devendo se encarregar da educação dos filhos. Posteriormente, no século XIX, tal crença se consolidou, com o aval dos médicos. E, ser professora era uma atividade considerada extensão da função maternal, portanto apropriada para as mulheres que precisavam ou queriam trabalhar fora do âmbito doméstico. Mulheres substituíram os homens que exerciam tal atividade e os salários tenderam a cair. Portanto minha resposta confirma a questão.

Faces da História pergunta: Exemplifique quando e em quais situações ocorreram no Brasil e no mundo, em que as mulheres só poderiam desenvolver qualquer atividade com a permissão de seus respectivos esposos.

Resposta da Professora Rachel Soihet:

O Código Civil estabelecido em 1804 na França por Napoleão Bonaparte colocava as mulheres sob total dependência do marido. Aqui no Brasil, em 1916 o novo código civil estabelecido, nele se inspirava e, igualmente, subordinava as mulheres aos cônjuges. Estas não poderiam trabalhar, viajar, sem a autorização daqueles. Não poderiam ter conta bancária própria, ficando inteiramente dependentes. Este código sofreu uma reforma em 1962, mantendo os homens a chefia da família, o que só se aboliu em 2002, quando esta passou a ser partilhada por ambos.

Faces da História pergunta: O seu tema de Doutorado fala sobre a mulher pobre do Rio de Janeiro no final do século XIX “Condição Feminina e Formas de Violência: Mulheres Pobres e Ordem Urbana 1890-1920”. Quais foram as suas fontes de pesquisa? Quais as maiores dificuldades durante a realização desta pesquisa? E qual foi a maior “descoberta” ao concluí-la?

Resposta da Professora Rachel Soihet:

Para a realização deste trabalho minhas principais fontes foram processos criminais e inquéritos policiais, nos quais as mulheres eram rés. Nessas fontes eu pude ter acesso, não apenas às falas das culpadas como das vítimas, das testemunhas, mulheres e homens e descortinar o seu cotidiano. Também, utilizei jornais da época nos quais pude acompanhar como veiculavam muitas das questões. Relatórios policiais, teses médicas foram também investigadas, além da literatura da época, entre outros, autores como Aluísio Azevedo, Lima Barreto, João do Rio e Machado de Assis. Ao cabo da pesquisa pude constatar que tais mulheres pobres não correspondiam ao modelo idealizado de delicadeza, submissão, fragilidade, vocação maternal etc. Eram mulheres fortes, na maioria chefes de família, trabalhavam muito etc. Tais atividades se refletiam na sua maneira de pensar e de viver, contribuindo para que procedessem de maneira menos inibida do que aquelas de outras classes sociais. Fato que não impedia que também sofressem a influência das idéias dominantes acerca do modelo ideal de “ser mulher”, ao qual aspiravam, mas que não se podia realizar diante de sua situação concreta de existência.

Faces da História pergunta: É verídico que os Movimentos Feministas visam uma política Socialista? Por que os paises Social-Comunistas, as mulheres têm tanto quanto, ou não têm “direitos” como nos paises capitalistas?

Resposta da Professora Rachel Soihet:

Não é verdade, a maioria dos movimentos feministas visou à conquista de direitos das mulheres, mesmo nas sociedades existentes, independentemente de tal transformação. Houve também lideranças socialistas que se separaram dos movimentos feministas organizados, e que só acreditavam na possibilidade de igualdade de direitos entre homens e mulheres numa sociedade socialista. Entre outras, temos a alemã Clara Zetkin, a russa Alessandra Kollontai. Esta última teve a iniciativa de criar um órgão na União Soviética o Zenodthel, ao qual caberia a implantação de medidas, visando à liberação das mulheres, o qual terminou por ser dissolvido por Stalin. Na verdade, nos países em que vigorou o “socialismo real” a prioridade seria a questão da classe social, conforme preconizado pelo marxismo.

Acreditava-se que alcançada a igualdade social, automaticamente, todo o resto seria conquistado. Acontece que as questões de gênero, como de etnia configuram outras contradições que para serem resolvidas devem, igualmente, ser enfrentadas, o que não aconteceu.

Faces da História pergunta: A partir de qual momento na história universal e na sociedade brasileira a mulher decide buscar igualdade de condições em relação aos homens? E o que a motivou?

Resposta da Professora Rachel Soihet:

A resposta já foi dada, mas acrescento que nos anos 1830, Nísia Floresta traduzia no Brasil a obra da inglesa Mary Wollstonecraft Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens que se constituía num libelo contra as desigualdades que acometiam as mulheres. A partir daí, Nísia Floresta teve intensa atuação, especialmente através da escrita de obras, nas quais tais questões se apresentavam. Durante o século XIX, mulheres criaram jornais, nos quais seus problemas eram colocados, denunciando as limitações que encontravam para desenvolvimento de todas as suas potencialidades. Ressalta-se, entre elas, Josefina Álvares de Azevedo que em 1890 no seu jornal A Família conjugava duas lutas: o abolicionismo e o feminismo. Esta clamava por direitos ao voto, à educação, profissionalização, direitos civis e o divórcio. Ainda, outras mulheres se manifestaram, mas a campanha tomou impulso com a atuação de Bertha Lutz que aqui chegando, vinda da Europa, onde fora completar sua formação liderou um grupo de mulheres, com as quais lutou pelo direito de voto, conquistado em 1932. Não se limitou, porém, a este aspecto, também reivindicando uma legislação que reconhecesse direitos idênticos entre homens e mulheres quanto ao trabalho, à educação e aos direitos civis.

Faces da História pergunta: A violência contra a mulher varia, segundo sua pesquisa, conforme a classe social a qual ela pertence? Qual o tratamento da justiça para esses casos?

Resposta da Professora Rachel Soihet:

Segundo pesquisas realizadas, a violência se constitui numa realidade presente em todas as classes sociais. Apenas, no caso das classes mais elevadas, as mulheres dispõem de recursos que impedem na maioria dos casos que a questão se torne do conhecimento da polícia e do público em geral. Com relação à justiça, algumas medidas foram obtidas, a partir da pressão das feministas nos anos 1970/1980, especialmente tornando uma questão até então considerada do âmbito privado de interesse público. Mas as penalidades, ainda são muito leves proporcionalmente.

Faces da História pergunta: A mulher pobre em função de seu status social e por muitas vezes estar na condição de “chefe de família”, teve maior facilidade para acessar os campos de trabalho disponíveis na época ou foi ainda mais difícil por enfrentar duplo preconceito?

Resposta da Professora Rachel Soihet:

As mulheres pobres sempre trabalharam. Em sua maioria, em atividades consideradas adequadas ao seu sexo, como lavadeiras, engomadeiras, doceiras, cozinheiras, bordadeiras, etc. Claro que mulheres também trabalharam como operárias, especialmente, porque eram menos remuneradas que os homens, mesmo realizando um mesmo tipo de trabalho, o que era vantajoso para os patrões. O resultado disso foi atraírem, muitas vezes, o antagonismo dos trabalhadores que não percebiam o uso que deles era feito. Muitos se colocaram contrários à concorrência feminina, manifestando sua insatisfação nos sindicatos. Passam a reivindicar salários que garantissem o sustento das famílias, contrapondo-se à participação das mulheres. De certa forma, caíam no jogo dos patrões, ao invés de se unirem às mulheres a fim de obterem ganhos comuns.

Faces da História pergunta: A condição da mulher em relação à violência doméstica tem modificado bastante. A Lei Maria da Penha é uma demonstração disso. Que outras ações seriam necessárias, na sua opinião, para garantir a dignidade feminina?

Resposta da Professora Rachel Soihet:

A Lei Maria da Penha é relativamente recente. Sinceramente, ainda não tenho elementos para avaliar o seu impacto. Quanto à dignidade feminina esta só poderá ser alcançada quando mulheres, mas também, homens, tiverem acesso à educação de qualidade que lhes permitam acesso a boas condições de trabalho, através do qual obtenham condições de autonomia. Paralelamente, cuidados médicos e psicológicos são fundamentais, pois além da violência física ocorre uma outra, tão ou mais perversa, que é a violência simbólica. Esta supõe a adesão pelos dominados das categorias que embasam sua dominação. Em outras palavras, a aceitação da violência se faz porque, no caso, muitas mulheres compreendem a relação de dominação – que é uma relação histórica, culturalmente construída – como algo de ordem natural, radical, universal. Assim, se explica, entre outros, porque algumas mulheres, ainda hoje, considerem que devam assumir uma atitude submissa, perante o companheiro, ou que cabe somente a elas a realização das atividades domésticas, embora também tenham um trabalho fora do lar e ainda reproduzam tais comportamentos para seus filhos e filhas.

Faces da História pergunta: Rachel você se considera “Feminista”?

(se a reposta for “sim” comente sobre as ações e perspectivas dos feministas de hoje)

Resposta da Professora Rachel Soihet:

Eu me considero feminista e acho que o feminismo hoje continua sendo uma luta pelo alcance de uma sociedade mais justa para mulheres e homens em todos os níveis. Portanto, como apregoavam feministas nos anos 1970/1980 a igualdade entre os gêneros deve ser articulada a questões de classe, etnia, geração etc.

Entrevista 2008: Otacilio Vicente